Quero compartilhar aqui no blog uma reflexão sobre a divisão do Pará que decorre das minhas leituras dos artigos produzidos pelo Lúcio Flávio Pinto, no seu Jornal Pessoal.
Talvez os argumentos que eu irei utilizar não divirjam em essência dos argumentos utilizados pelo Lúcio, mas as consequências deles caminharão para uma direção contrária à que tenho lido em seus artigos, isto é, sustentarei a hipótese de que, sob todos os aspectos, a divisão do Pará é salutar para todos nós amazônidas.
Meu primeiro argumento é de que a divisão do Pará dá início a um processo, já tardio, de modernização da divisão administrativa da Amazônia.
A atual configuração administrativa da região traduz uma realidade de um Brasil imperial. Ela se justificava, então, para uma realidade socioeconômica monolítica, marcada pela prevalência de interesses de barões e coronéis da terra, de escravos e de seringais, cujo poder se estendia incontestável sobre gigantescas extensões territoriais.
A Amazônia do século XXI é marcada pela diversidade socioeconômica. São muitos os atores e os interesses sociais e econômicos em disputa na região na atualidade; interesses que vão desde o ambientalista ao da grande mineração, passando pelo dos pequenos posseiros, extrativistas, indígenas, pesquisadores, investidores estrangeiros em busca de nichos de investimentos, entre outros.
A luta pelo separatismo, acima de tudo, traduz esta realidade.
Reduzir, portanto, esta luta a interesses de sojeiros, mineradoras, ruralistas e madeireiros é negar a realidade histórica presente que produz o impulso separatista. E, mesmo que se reconheça estes interesses entre os abonadores deste processo de emancipação, isso não o deslegitima, mesmo porque estes são interesses sociais legítimos que apenas empreendem a sua própria luta histórica.
Por isso, esta estrutura administrativa não suporta mais esta realidade, não a traduz e se encontra já deslegitimada pela história presente.
Lembremos de que uma das funções elementares que o federalismo busca realizar é a da manutenção da coesão e integração da nação.
Essa manutenção só é possível quando as populações dos diferentes territórios que constituem a federação se sentem satisfeitas em seus interesses, para o que concorre a ampliação das oportunidades de gestão e de controle para o uso de seus recursos naturais, culturais e humanos -dado que tem sido sistematicamente negado às populações do Tapajós e do Carajás.
Meu segundo argumento é de que o modelo que está posto já se mostrou incapaz de promover desenvolvimento no Pará, por ser um modelo tipicamente colonial, baseado na sangria ou exploração predatória dos recursos naturais para beneficiar, mormente, interesses externos à região e uma casta de notórios encastelados nas estruturas de poder do estado.
Assim, defender a não divisão é defender a permanência e a manutenção inalterada deste modelo colonial.
Pode-se argumentar que esses mesmos interesses predatórios continuarão a reinar nos novos territórios emancipados, o que não é uma inverdade, mas reduz, conforme já argumentei, o alcance do processo que está em gestação.
Há interesses ambientalistas, há interesses sustentáveis, há interesses de setores econômicos modernos que querem se fixar na Amazônia. Para isso, precisam também de espaço e incentivos políticos, dos quais o acesso aos centros de decisão é um deles.
Este acesso é dificultado pela distância das esferas de decisão maior e pelo encastelamento dos poderosos do estado, fieis porta-vozes dos interesses coloniais na região, sempre dispostos a voltar as costas para a modernidade.
Eles tratam esses interesses com desdém, e buscam deslegitima-los exatamente porque eles representam uma alternativa ao processo do qual são ponta-de-lança e beneficiários na região.
Por isso, tais interesses permanecem confinados dentro de universidades, institutos de pesquisa, ONGs e setores da sociedade civil, como sindicatos e associações, a maioria fragilizada pela constante perseguição que os donatários do poder não se cansam de empreender sobre eles.
Disso decorre meu terceiro argumento: as elites que comandam a vida política do Pará não podem capitanear o processo de modernização do qual a região ocupada pelo estado necessita porque elas estão comprometidas, para lembrar Goethe, até a alma com os interesses coloniais que estão destruindo o estado.
Insisto nesse fato, porque a história o comprova: este é um modelo falido e não existe possibilidade de mudanças a menos que se promova um corte e uma distribuição de poder no estado, e esta divisão representa um primeiro passo nesse sentido.
O meu quarto argumento está associado a este último também: distribuir o poder é tão importante quanto distribuir renda para o desenvolvimento de uma sociedade. E este ato de divisão do Pará, com todas as falhas que possamos apontar, representa um passo nesta direção de divisão do poder no estado e na Amazônia.
Em quinto lugar, digo que coaduno da preocupação de muitos quanto à possibilidade do poder permanecer concentrado nas mãos de uma casta de famílias comprometidas com interesses nada republicanos.
Porém, é de se convir que a redução das distâncias de acesso aos centros de decisão do estado, assim como o próprio processo político pelo qual a sociedade desses territórios, incluindo a do remanescente Pará, está passando, tendem a fortalecer o envolvimento, o debate e a ação da sociedade civil.
Não há porque desacreditarmos nesta possibilidade histórica, uma vez que ainda não a experimentamos e uma vez que há ingredientes sociais que possibilitam isso.
A única coisa que podemos dizer com certeza é que, mantido o padrão administrativo e o modelo de (sub)desenvolvimento vigentes, é mais difícil fortalecer a sociedade civil e, assim, mais difícil avançar num processo de distribuição de poder no estado e na região.
Por fim, na minha concepção, a não aprovação da divisão no plebiscito fortalecerá ainda mais as oligarquias que capitaneiam esse modelo colonial estabelecido, por se sentirem referendadas pelo resultado: os colonizados, finalmente, votaram a favor da manutenção das suas correntes.
Para concluir, quero lembrar uma que muito me chama a atenção pela sua bela imagem do dilema do homem com o tempo e com a história. Ela diz mais ou menos assim: “O passado é noite escura, o futuro é sol nascente: é feita de luz e sombra a incerteza do presente”.
Atualizando para a realidade paraense contemporânea, para mim, a luz do presente é a possibilidade de mudança que se abre no horizonte histórico, enquanto que a sombra é a realidade colonial que reina inabalável no momento. É preciso dar uma chance à luz!
Definitivamente, a escuridão do presente só consegue projetar mais escuridão para o futuro no Pará. Por isso, não temos muito o que perder e, principalmente, não podemos temer sair desta caverna seguindo os raios de luz da razão e da esperança que se projetam pelas frestas da história.
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* É sociólogo e professor da UFPA (Universidade Federal do Pará). Reside em Belém.
Publicado no blog do jeso (jesocarneiro.com.br)
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