sexta-feira, 21 de setembro de 2007

O plebiscito e o perigo de um Pará já dividido. O Zé-Povo paga a conta, como sempre

Manuel Dutra *

Há algum tempo escrevi que a vitória de um “não” no esperado plebiscito pela revisão territorial do Pará será pior do que a não realização da consulta popular. A questão de fundo é: como ficará a relação de Marabá e Santarém, vitrines das duas regiões que pleiteiam a autonomia, com a capital Belém, depois de um possível revés no plebiscito? E não me refiro propriamente aos políticos e aos empresários, pois estes sempre encontram maneiras de se ajustar às situações esperadas e inesperadas em suas alianças com os grupos predominantes em Belém. Penso nos demais setores sociais do Sul e do Oeste paraenses, pois a luta pela emancipação, pela primeira vez, está indo muito além da arena partidária para afetar majoritariamente a população. O que preocupa é a maneira irresponsável como a questão vem sendo tratada. Do lado dos contrários, o discurso é o da desqualificação debochada de uma demanda que envolve uns tantos milhões de paraenses majoritariamente desejosos de ver, pela autonomia político-administrativa, um futuro diferente do presente. Do lado dos militantes favoráveis percebe-se que não têm a exata noção da magnitude da questão. Entre os erros crassos cometidos está a inclusão do Xingu na área a ser desmembrada, supostamente não muito do agrado das lideranças e de setores populares do principal município daquela região, Altamira. Os dois lados estão brincando com fogo. A verdade é que o Pará já está dividido, historicamente dividido, sentimentalmente dividido. Basta lermos a introdução do Primeiro Plano Qüinqüenal da SPVEA, mais tarde Sudam, para constatarmos, nas palavras de seu primeiro superintendente, o historiador amazonense Arthur Cezar Ferreira Reis, a cruel realidade que permanece, ou seja, nos idos de 1950 a cidade de Belém se caracterizava por abrigar uma elite bacharelesca e predadora das populações interioranas que, historicamente exploradas e sem contar com a presença do Estado, sustentavam os ares de “modernidade” da capital. Isto está num documento oficial, do governo federal. Se a realidade presente mudou um pouco, seria desonesto não constatar hoje a brutal diferença entre Belém e as principais cidades do interior, um estado cabeçudo com um corpo franzino. Se os representantes do poder político e as lideranças empresariais, culturais e demais proeminências encasteladas em Belém se dessem ao trabalho de menos ir a Miami ou Paris e fossem ao interior que dizem tanto desejar unido à capital, perceberiam a realidade que sustenta o pleito por autonomia. Há gente falando de plebiscito, de ambos os lados, sem ter a noção do que isso tudo representa. Se a consulta popular resultar num “não”, haverá festas? Se houver, pior ainda. O presente sentimento de aversão crescente contra a campanha pelo “não” poderá, Deus nos livre, transformar-se em rancor. E o Pará estará dividido pelo ódio, embora “unido” institucionalmente. Seria como forçar a convivência de um casal que deseja ardentemente separar-se. Há, portanto, subjazendo a isso tudo, algo muito grave que não pode ser encarado com ignorância, irresponsabilidade e molecagem mesmo, a partir de certa imprensa paraense. Cada piada ou gozação que sai no jornal O Liberal e outras mídias de Belém são intensamente repercutidas no Oeste e no Sul do Pará, potencializando o ressentimento. Que futuro estamos construindo dessa forma? Com as campanhas contra e a favor despidas de racionalidade e de bom senso, o que fica é o emocional, a imaturidade de não tratarmos com alguma seriedade dos problemas do Pará e da Amazônia, como bem identificou o empresário e político Oziel Carneiro há alguns anos. E cito Carneiro por ser ele francamente contrário à revisão territorial. Porém, talvez, uma das poucas vozes que, há algum tempo, chamou a atenção para essa irracionalidade e para a ausência de debates sérios sobre os problemas do Pará como um todo, incluindo aí também as demandas autonomistas. Não acredito que essa racionalidade aparecerá. Por isso sou pessimista tanto com a perspectiva de um “não”, pelas razões já apontadas, como com a possibilidade de um “sim”. Isto porque as velhas aves de rapina, daqui e de alhures, já preparam as asas para abocanhar o quinhão que sempre foi negado ao povo trabalhador. E essa nefasta herança histórica sobreviverá talvez com mais força e astúcia após uma eventual autonomia do Oeste e do Sul. Neste sentido, hipotéticos Estados do Pará “remanescente”, Tapajós e Carajás em nada de substancial se diferenciarão: o Zé-Povo continuará arcando com o peso de sustentar as mesmíssimas elites que historicamente usufruíram de seu trabalho. E, se vivo fosse, o sábio e conservador historiador da Amazônia poderia escrever, amanhã, sobre Santarém e Marabá, o mesmo que escreveu de Belém há meio século.

* Jornalista

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